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O SISTEMA E A NORMA LINGUÍSTICA E A PRÁXIS DAS LÍNGUAS DE ESPECIALIDADE

 

Maria Tereza Camargo Biderman

UNESP, SP, Brasil

Na contemporaneidade com a interação incessante entre as culturas e as línguas, falantes ou escritores usam os recursos do sistema linguístico e do repertório léxico de que dispõem um tanto aleatoriamente sem muita consciência, critério e cuidado nas criações neológicas, ou na incorporação de estrangeirismos. Daí resultam numerosas impropriedades e ambigüidades. Freqüentemente ocorre que coexistem na língua formas concorrentes criando uma grande confusão. No Brasil os dicionários de língua e os dicionários técnicos-científicos ao invés de contribuírem para estabelecer uma norma, aumentam o problema apresentando versões diversas e conflitantes. As gramáticas normativas também não tratam de maneira suficientemente abrangente e adequada a complexa questão da formação de palavras no idioma.

Constatamos também que ciências afins ou fronteiriças servem-se de processos de criação de palavras (prefixação erudita com prefixos gregos e latinos, por exemplo) de maneira divergente, atribuindo valores semânticos distintos para o mesmo formante. Por outro lado, a adaptação de termos ingleses sobretudo a uma língua latina como o português, mui diversa morfofonicamente do inglês, vem suscitando atitudes e decisões diferentes por parte dos criadores ou divulgadores do anglicismo.

Por outro lado, lexicólogos e lexicógrafos não deveriam simplesmente enumerar as unidades lexicais e proceder à sua descrição. Isso porque é possível identificar muitas regularidades no léxico que precisariam ser examinadas e analisadas não só para se compreender melhor os fenômenos lexicais, mas também para que se possa sistematizar mais rigorosamente esses fenômenos (Correia, 1993). Assim um estudo mais acurado dos processos morfo-semântico-categoriais contribuiria substancialmente para que os dicionários descrevessem o léxico de modo mais adequado e correto.

Cano (1996) examinou prefixos gregos e latinos que exprimem avaliação e localização na formação de termos da linguagem técnico-científica nomeadamente dos seguintes domínios: astronomia, biologia, botânica, ecologia, física, fitopatologia, geologia, geomorfologia, medicina, química, saneamento. Usou como corpus de análise dicionários dessas áreas. Confrontou os termos registrados por esses dicionários com as descrições morfo-semânticas feitas pelas gramáticas normativas do português contemporâneo (variedade brasileira) no capítulo relativo à derivação. Ora, é de supor que as gramáticas estabeleçam os modelos e as normas de formação de palavras disponíveis no sistema morfo-lexical do português. A pesquisadora constatou que "a maioria desses prefixos, disponíveis na língua comum, quando empregados em linguagem técnico-científica veiculam sentidos específicos, não encontrados fora das terminologias" (p. 130). Particularmente os prefixos de valor locativo são exclusivos destas terminologias. Constatou também que esses prefixos podem veicular valores não registrados nas gramáticas tradicionais (p.131).

Não vou discutir problemas de teoria lexical relativa às fronteiras entre os processos de formação de palavras em português, nomeadamente entre a derivação e a composição. Não cabe arguir aqui se os formantes que examinamos são prefixos, prefixóides ou elementos de composição. Não julgo ser este o lugar e o forum para tratar esta questão. Vou admitir que se trata de casos de derivação por prefixação. Além disso, adotarei o conceito de prefixo que soma a proposta de Sandman (1989) com a proposta de Alves (1991).

Prefixo é um elemento preso, determinante da palavra derivada, que forma palavras em série (Sandmann) e mais: tem a capacidade de funcionar autonomamente e perde parte de sua acentuação ao associar-se a uma base (Alves).

Examinei o uso de alguns prefixos de origem grega e latina em bases textuais eletrônicas de que dispomos.

Foram dois os corpora informatizados analisados.Esses dois corpora são muito grandes ( mais de dez milhões de palavras) e variados, sendo representativos do atual padrão linguístico do português do Brasil.

I. O primeiro corpus [ doravante referido como corpus] inclui uma grande variedade temática e discursiva das principais modalidades do português brasileiro escrito e falado num total aproximado de 6 milhões de palavras. Esse corpus do português contemporâneo do Brasil (1950 em diante) engloba as seguintes modalidades de discurso: 1) linguagem literária [LL], incluindo os principais autores e obras literárias do Brasil contemporâneo; 2) linguagem jornalística [LJ] de jornais e revistas de grande circulação; 3) linguagem falada [LF] e 4) linguagem técnico-científica [LT]. O subcorpus de LF inclui fala espontânea ou entrevistas dirigidas, bem como registra falantes de vários pontos do Brasil e dos mais diversos níveis educacionais - desde analfabetos a formados em universidade. Quanto à linguagem científica e técnica (LT), esse subcorpus resultou de uma ampla coleta de textos (obras científicas destinadas ao grande público e periódicos de divulgação com temática científica). Tais obras versavam sobre os mais variados domínios do conhecimento como: administração, agropecuária, antropologia, arqueologia, arquitetura, artes, astronomia, biologia, botânica, cibernética, contabilidade, direito, ecologia, economia, educação, esportes, filosofia, física, fisioterapia, geografia, hidrologia, história, lingüística, medicina, mineralogia, psicologia, psiquiatria, religião, saúde, zoologia, etc.

Embora tenha analisado apenas uma amostragem dos prefixos disponíveis no sistema do português, visto como os dois corpora são imensos e o número de prefixos a serem examinados igualmente numeroso, julgo poder fazer algumas ilações a partir dos dados examinados. Prefixos e elementos de composição greco-latina mostraram-se incomuns na linguagem literária e raros na linguagem falada. São, portanto, recursos de criação vocabular típicos das linguagens de especialidade.

Por veicular e divulgar as descobertas das ciências e a evolução das técnicas, a linguagem jornalística secunda a linguagem técnico-científica no uso relativamente freqüente destes prefixos e formantes neológicos. Para confirmar as deduções extraídas do primeiro corpus, procedemos a um teste sobre uma base textual exclusivamente jornalística - a revista VEJA. De fato, a linguagem desse veículo tem a possibilidade e a probabilidade de modelar o padrão linguístico da camada dirigente, isto é, o segmento social mais prestigiado no país. A revista VEJA é a mídia impressa com maior tiragem no país ( mais de um milhão de exemplares) e com distribuição em todo o território brasileiro.

II. A base digital da revista VEJA tem 32 MB aproximadamente; inclui todos os números semanais da revista dos anos 1992, 1993, 1994, 1995. Totaliza aproximadamente 4.500.000 palavras [ doravante referida como Veja ]. Pode ser considerada como um acervo representativo da mídia escrita brasileira, não só pelo grande prestígio e penetração desse veículo em todo o território nacional, mas também como legítimo representante da norma urbana culta.

Em sua monumental tese sobre Formação de palavras em português: aspectos da construção de avaliativos (1993), Rio-Torto examinou os produtos lexicais de caráter avaliativo. Quer seja de cunho quantitativo, quer seja de cunho qualificativo, essa avaliação implica numa escala de gradação com diferentes níveis que vai do nível inferior, mínimo, ao grau máximo, que implica em "intensidade excessiva, extraordinária, excepcional".

Vejamos, pois, nestes dois bancos de dados, neologismos formados com alguns prefixos de origem grega e latina que geraram termos avaliativos.

HIPER-

Entra na derivação de palavras de origem erudita ou científica, significando "acima de" " posição superior a", "além de "; também pode indicar "excesso", portanto, com valor intensivo. Constituem exemplos nas bases eletrônicas:

hipertensão = tensão arterial superior à considerada normal [ aqui hiper- tem sentido de "posição superior a"]. Essa palavra ocorreu em várias obras científicas e em textos jornalísticos, evidenciando que se trata de termo totalmente vulgarizado tanto no corpus como em Veja. Idem os derivados hipertenso, hipertensivo.

Na pesquisa de Cano (1996) acima referida, a pesquisadora não encontrou hiper- com valor locativo em nenhum dos quatorze dicionários examinados. Nos dois corpora que examinei, os vocábulos acima referidos são os únicos em que esse valor locativo ocorre. Talvez se possa considerar que hipertonia, hipertermia e hiperbárica também registram ocorrências desse prefixo com valor locativo. Em todos os demais está presente apenas o valor intensivo, isto é "excesso de" como em:

hiperalgia [ = excesso de dor]; hipercalcemia [ = taxa elevada de cálcio]; hipercalórico [= que contém ou fornece um número de calorias elevado]; hipercapnia (LJ) [= aumento de concentração de anidrido carbônico no sangue]; hipercloridria [= aumento da concentração de ácido clorídrico no suco gástrico] (LL); hiperemia [= excesso de sangue em determinada parte do organismo] ocorreu em várias obras sobre doença e saúde.

Na linguagem técnico-científica do corpus ocorreram 87 termos formados com hiper- dos quais a maioria são substantivos (39): hiperalgia, hiperalimentação, hiperatividade, hiperbilirrubinemia, hipercalcemia, hipercapnia, hiperconcentração, hiperdemocracia, hiperemia, hiperestesia, hiperexcitabilidade, hiperentensibilidade, hiperfonese, hiperfunção, hiperglicemia, hiperglobulinemia, hiperinflação, hiperlipoproteinemia, hipermercado, hipermetria, hipermia, hipermonocultura, hipermotricidade, hipernasalidade, hipernasalização, hiperpassividade, hiperpimentação, hiperplasia, hiperreatividade. hipersensibilidade, hipersexualidade, hipertensão, hipertireoidismo, hipertonia, hipertricose, hipertrofia, hiperventilação, hipervigilância, hipervolemia. São adjetivos (19): hiperbárico, hipercalórico, hipercinético, hipercrítico, hiperêmico, hiperemiante, hiperérgico, hiperfonético, hipermilionário, hiperpigmentado, hiperplástico, hipersensível, hipersonoro, hipertenso, hipertireoidiano, hipertônico, hipertrofiado, hipertrófico. Apenas um verbo: hipertrofiar. Quase todas essas palavras provêm de obras sobre medicina, farmacologia e saúde. Uma exceção: hiperdemocracia (política).

Na base Veja os resultados foram os seguintes: hiper- tem 186 ocorrências significando " quantidade ou grau superior ao normal ou excessivo" como em hiperdosagem, hiperinflação, hiperinflacionário, hipersensível, hipersensibilidade, etc. Também nesse banco de dados os derivados de hiper- ocorreram em textos de divulgação relativos à saúde, medicina, psicologia, psiquiatria; por exemplo: hipermetropia, hipersensibilidade, hipersensitivo, hipersensível, hipertensão, hipertenso, hipertensivo, hipertireoidismo, hipertricose, hipertrofia, etc. De fato, parece que as ciências da saúde abundam em termos formados com esse prefixo em contextos como: hipertrofia da próstata, hipertrofia mamária, etc. Foi registrado um raro uso metafórico desse prefixo: hipertrofia do poder executivo, hipertrofia dos bancos, hipertrofia econômica em reportagens sobre economia.

Para atribuir a uma base o valor semântico oposto ao de "excesso" é muito usado o prefixo HIPO- para significar" embaixo, posição inferior; abaixo de um mínimo considerado normal, donde: reduzido, deficiente".

No corpus registrei 157 ocorrências de hipo- dos quais 81 na LT : hipoacusia, hipoalimentação, hipobárica(s), hipocalcemia, hipocalórico, hipocampo, hipocloretada, hipocondria (> hipocondríaco), hipocrônico, hipocôndrio, hipodinâmico, hipodérmico, hipodinâmico, hipodérmico, hipoestrogenismo, hipofisário, hipofluxo, hipogeu, hipoglicemia, hipoglosso, hipogástrico, hipometria, hipopituitarismo, hipoplaquetose, hipoplasia, hipoproteinemia, hiporreflexia, hipossuficiência hipotenusa, hipotermia, hipoteticamente, hipotireodismo, hipotonia, hipotricose, hipotrofia, hipotético, hipotônico, hipotálamo, hipotímpano, hipoventilação, hipovolêmico, hipoxia.

MEGA-

No vocabulário técnico-científico este prefixo significa:

a)" de proporções aumentadas"; logo tem valor de intensificação;

b) associado a uma base vocabular que expressa medida, equivale a: "um milhão de vezes a medida da base".

No corpus quase todas as ocorrências de mega- foram registradas na linguagem jornalística (LJ) : exemplos: megabyte(s), megalópoles, megawatts. Na linguagem literária (LL) ocorreu como: megatérios (3 vezes); na linguagem técnico-científica: megacolon, megaureter, megawatt (2 vezes). Em todos esses casos o significado corrente é o de "grande" ou "de proporções aumentadas", portanto, intensificador : megalópoles; megacolon. Com o significado de "um milhão de vezes a medida da base" apenas os exemplos de megabyte e megawatt.

Em Veja tivemos 316 ocorrências do prefixo mega- integrando 110 vocábulos diferentes, um numerário elevado sem dúvida. Em pouquíssimas palavras esse formante tinha o significado de " 1 milhão de vezes o valor da base", a saber: megahertz, megaton, megatério, megawatts. Em todas as demais 107 palavras mega- é apenas um intensificador para indicar excesso, a saber: megacartel, megaconcerto, megaconferência, megaconstrutor, megacontrato, megacorporação, megadesenho, megaempresário, megainvestidor, megamanifestação, megamodelo, megaorganização, megapotência, megaproduções, megapúblico, megarrede ( = a Internet), megashow, megassucesso, megaterremoto, megatraficante, etc. Algumas criações neológicas são extravagantes, testemunhando o gosto do chocante, do inusitado, característico do estilo jornalístico : megacartola, megaego, megafavelópolis, megafazendeiro, megaídolos, megalatifundiários, megamaracutaia e vários outros similares. A base lexical latifundiário, por exemplo, designa "um grande proprietário de terras" e foi acrescida do prefixo mega-,; logo, megalatifundiário é uma composição redundante, hiperbólica.

Vemos, pois, que, no português contemporâneo, estes dois prefixos hiper- e mega-, originalmente emprestados ao grego para formar novos termos científicos, estão sendo descaracterizados, deixando de serem exclusivos de formações eruditas e estão-se banalizando. A imprensa vem usando esses prefixos como meros intensificadores para avaliações. Ora, a língua portuguesa tem outros recursos morfossintáticos e lexicais para expressar a avaliação ( intensidade excessiva, excepcional, grau extremo) como o grau superlativo do adjetivo e o aumentativo do substantivo, bem como vários adjetivos qualificativos. Além disso, estes dois prefixos [hiper- e mega-] estão concorrendo entre si e substituindo outros prefixos latinos mais usuais até bem pouco tempo como super- e ultra-.

Neste ponto vale a pena fazer uma pausa, para lembrar que, descrevendo a evolução do latim vulgar para as línguas românicas, muitos romanistas apontaram o fato de que o gosto pela expressividade levava os falantes do latim vulgar e do romance primitivo a usar prefixos e partículas (ad-, ex-, in- por exemplo) como reforçativos, gerando valores redundantes. De fato, o uso desgasta os recursos de expressão da língua, induzindo os falantes a lançarem mão de novas formas e de novos processos para substituir os anteriores, numa tentativa de recuperar a força expressiva da linguagem. Isso ocorre em qualquer língua e vale sobretudo para palavras, partículas e formantes que veiculam sentidos avaliativos.

 

Nesta altura convém confrontar o uso destes prefixos gregos de valor intensivo com os prefixos latinos equivalentes super- e ultra-. Super- sobretudo cujo uso aumentou muito nas duas últimas décadas. Assim sendo, hiper- e mega- passaram a concorrer com super- e ultra- mais recentemente, não só na língua geral, mas também nas línguas de especialidade. No corpus foram registradas 2.135 formas de super-; excluindo as formas do paradigma verbal de alguns verbos como superar e seus derivados, chegamos a uns 2.000 vocábulos derivados de super- tais como: superacordo, superadvogado, superagente, superagudo, superalimentação, superantigo, superaquecido, superaquecimento, superarma, superastro, superatacante, superatleta, superbacana, superbicheiro, superburocrata, supercalórico, supercampeão, supercaro, superchique, supercomputador, superconcentrado, supercondutividade, supercondutor, superconservador, supercopa, supercraque, superdelegada, superdetetive, superdimensionado, superdosagem, superdose, superdotado, superespião, superfaturado, superfaturamento, superfaturar, superfrango, supergata, superherói, etc. Há um grande número de substantivos e de adjetivos; os verbos, porém, são raros. A maioria dessas formações com super- tem cunho popular, ou procedem da linguagem coloquial, havendo poucos cultismos. Vejamos agora o que ocorreu nos corpus, visto como ele constitui um acervo das várias modalidades discursivas da língua. Substantivos e adjetivos são igualmente freqüentes e raros os verbos. Quanto à distribuição deste prefixo pelos vários gêneros, ele ocorre em todos, predominando, porém, nas LT e LJ. Alguns exemplos: linguagem literária: superexcitada, superluxo; linguagem falada: superbonito, supercheio, superconfusão, superconservador, superengraçado, supermãe; linguagem técnico-científica: superaquecido, superaquecimento, superatividade, superconcentração, superconstrução, supercozido, superdosagem, superdotado, superestrutura; linguagem jornalística: superastro, superbacilo, superbactéria, superbanda, superbem, super supercomputador, supercopa, superdesenho, superdetetive, superdosagem, superdotado, superequipado, superestrutura, superfaturado, superfotógrafo, supergol, superinflação, superinteligente, supermicroscópio, supermoderno.

Para exprimir o nível inferior extremo ( grau diminutivo) tem grande freqüência, nestas bases, o prefixo:

MICRO-

O total das ocorrências no corpus foi de 284. Predomina na LT onde é muito usado. Valores semânticos:

a) determina um dado X a que se atribui dimensões reduzidas; assim, o prefixo se refere à redução das dimensões da base prefixada;

b) redução daquilo a que a base se destina como em micro-história = história arqueológica de uma pequena área.

Microbiana < derivada de micróbio = ser vivo de dimensões tão pequenas que só pode ser visto com microscópio.

Microcefalia = cabeça de tamanho reduzido; donde microcéfalo = que tem a cabeça excessivamente pequena. Microclima = clima de uma área de pequenas proporções.

Apareceu também várias vezes na LJ do corpus, inclusive com valor metafórico.

Outros exemplos de "redução das dimensões da base" em termos da LT: microclínio, microcomedor(es), microcosmos, microelementos, microestimulação, microfauna, microfeixes, micronódulos, micronutriente, microonda(s), microorganismo(s) ou microgranismo(s), micropausa, microrrede, microwatts. Nos vocábulos seguintes a base se refere a um X muito pequeno: microbiologia (= biologia de seres muito pequenos), microeletrônica (= eletrônica de componentes muito pequenos).

Na LJ que divulga o vocabulário técnico-científico, ocorreram várias vezes: micronutrientes, microondas, microorganismo(s) ou microrganismo(s), e ainda em usos esporádicos como: microrregião e microincisões (1 vez e no plural).

Microscópico ocorre várias vezes na LT [ ciências da Saúde, Mineralogia, Zoologia]. Pode significar "tamanho muito reduzido do referente qualificado" como em animais microscópicos, cristais microscópicos, isto é, ser (animal), objeto (cristal) tão pequeno que só é visível ao microscópio como "feito, realizado com microscópio", a saber: exame microscópico. Ora, microscópio é o " instrumento ótico que fornece imagens muito ampliadas de objetos extremamente pequenos".

Aparentemente o valor semântico do prefixo micro- não é alterado pela vulgarização promovida pela mídia.

Para não exceder o tempo e o espaço de que disponho, não vou discutir aqui um tema paralelo que me propusera anteriormente, a saber: a grande freqüência de neologismos de origem inglesa que estão gerando produtos híbridos em português, particularmente na linguagem da informática.

À guisa de conclusão, farei um balanço sobre a forma pela qual o léxico comum cresce à custa das línguas de especialidade. Primeiro, é preciso lembrar que é quase impossível definir com precisão o léxico comum por oposição aos vocabulários técnico-científicos, isto é, delimitar claramente as fronteiras entre ambos, pois elas são difusas. Basta rever os muitos exemplos acima referidos de termos que freqüentam tanto a lista do corpus na categoria LT como os vocábulos da base Veja. E isso é natural. De fato, uma parte dos termos dos vocabulários técnico-científicos penetram no léxico comum através da mídia; sobretudo hoje quando o papel dos meios de comunicação de massa assumiram uma enorme proeminência nas sociedades contemporâneas. É típica a situação em que algum fato ou evento muito veiculado pela mídia escrita e televisiva, é continuamente comentado por comunicadores e jornalistas. Tal reiteração intensa penetra fundamente nas mentes dos falantes da comunidade, convertendo certos termos em testemunhas de um dado momento histórico-cultural do povo. Constituem exemplos recentes no Brasil, os vocábulos: gene, impeachment, narcotráfico e os acronímicos AIDS e DNA.

Além disso, é bom lembrar ainda que, ao ser incorporado ao léxico comum, o termo pode permanecer inalterado ou sofrer alterações profundas. Há casos notáveis de vulgarização de termos de origem científica como AIDS, DNA, e vários derivados de hiper-, mega-, micro-, super- acima referidos como hiperinflação, hipertensão, hipertrofia, megabytes, megahertz, megalópoles, megawatts, micróbio, microscópio, microeletrônica, superdose, superdotado, superestrutura, etc. Nesses casos ao ser incorporado ao léxico comum, freqüentemente o termo adquire novos significados, podendo até mesmo perder seu significado original. Essa expansão semântica pode gerar uma polissemia que o termo original monossêmico, desconhecia.

Concluimos ainda que a mídia vem se constituindo no principal fator determinante da norma linguística. Até mesmo a escola e a literatura exercem menor influência na sacramentação dessa norma. Além disso, os meios de comunicação de massa, sobretudo a televisão, estão integrando um país continental como o Brasil numa aldeia global. De fato, passamos de um estágio de isolamento doméstico e internacional, para uma situação em que o vasto território nacional é interligado pelas cadeias de rádio e televisão, bem como pela variadíssima mídia impressa. Embora atinja uma massa menor de indivíduos dentre os 150.000.000 de brasileiros, a importância da imprensa escrita não é menor, por tratar-se de veículo que influencia a classe dominante, a qual exerce um papel muito relevante num país socialmente estruturado como o Brasil. De fato, em toda sociedade o comportamento da classe dirigente, seu comportamento linguístico inclusive, constitui o modelo ideal que os demais segmentos da população adotam como referência.

Como demonstramos, as novas criações formadas com prefixos eruditos greco-latinos tiveram na linguagem jornalística um agente fundamental no processo despadronização da norma lexical a partir dos recursos lexicais existentes no sistema. De fato, a mídia como poderosa instituição que é, está contribuindo para expandir os recursos expressivos da língua e para ampliar o vocabulário comum, a partir de fatos linguísticos originários nas ciências e nas técnicas.

 

Referências bibliográficas

Alves, I.M. "A questão das fronteiras em formações prefixais" in: Neves, M.H.M. (org.) Descrição do Português I. Araraquara, UNESP, Série Encontros, 1991, 42-47.

Cano, W.M. A prefixação no vocabulário técnico-científico: um estudo semântico. UNESP, Araraquara, Ddisseratação de Mestrado, 1996.

Correia Ferreira,M.M. A formação de adjetivos em Anti- em Português. Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa, Dissertação de Mestrado. Lisboa, 1992.

Rio-Torto, G.M. Formação de palavras em Português: aspectos da construção de avaliativos. Universidade de Coimbra, Tese de Doutoramento. Coimbra, 1993.

Sandmann, A.J. Formação de Palavras no Português Brasileiro Contemporâneo. Curitiba, Scientia et Labor: Icone, 1988.

 

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